Para o jornalista e escritor Carlos Peixoto, a literatura e a vida não se distanciam. E entre os trechos dessa estrada, o jornalismo faz as pontes.
Em “Desejo de ser inútil", seu primeiro livro de haicais, Carlos Peixoto anuncia um tanto de sua existência. Certa vez escreveu que descobriu duas paixões tardias: a guitarra e os jardins. Em seu olhar calmo e ao mesmo tempo revolucionário sobre o mundo, suas memórias guardam o perfume da vida no bairro das Quintas, quando descobre ainda menino a literatura. Mesmo sem saber ler, a cor dos quadrinhos de uma biblioteca pública itinerante e a voz da sua irmã Ednice são afagos até hoje em sua história. Para ele, a literatura e a vida não se distanciam. E entre os trechos dessa estrada, o jornalismo faz as pontes.
Pai de Alexis Peixoto, também jornalista, ele não lembra de querer ter outra profissão. Desde os encontros na paróquia com um grupo de intelectuais, até os encontros em bares da cidade para discutir política, visões de mundo, literatura, música, futebol e tudo o que viesse pela frente. Diretor de jornalismo da TRIBUNA DO NORTE até 2018, quando dedicou 1/3 da sua vida pelas ruas da Ribeira, entre o barulho alucinante das máquinas de imprimir os jornais, até as angustias do dia a dia com reportagens e sonhos, Peixoto deixa marcas por onde passa.
Com sua sabedoria e paciência para ouvir o outro, ele acredita que o mundo precisa hoje de menos medo e mais coragem, menos conservadorismo e mais rebeldia e menos uniformismo e mais diversidade, para que possamos atravessar esse tempo com mais vida. E ele aposta em versos como: “Bandos ruidosos/ do algo zombam os pardais/ da paciência do gato”, e assim, abre manhãs sem esquecer o ontem. Para falar um pouco sobre sua história no bairro das Quintas até a Ribeira, ser jornalista nos dias de hoje e sobre saudade, Peixoto conversou com a TRIBUNA DO NORTE em uma manhã quando ainda começavam os primeiros casos de Coronavírus no Brasil, antes do isolamento, e tendo em mãos o livro “As Coisas que Perdemos no Fogo” de Mariana Enriquez.
Memórias da Quintas
Nasci nas quintas, sou natalense. Cresci na rua São Geraldo antiga rua Nova, a rua da feira, numa época que sequer era calçada, vi tudo se transformando. Vivi muitos anos nas Quintas, até 1978 quando já adolescente meu pai faleceu. Depois de lá, fui morar em Pirangi, quando naquela época a cidade estava começando a urbanização. Trabalhava de dia e estudava a noite, na antiga escola Técnica do Comércio. Descia para a Ribeira na Praça Augusto Severo, mas o ônibus só ia até o Jiqui. De lá caminhava até Pirangi, na primeira etapa, não tinha quase nada naquela época. A avenida do Jiqui era barro. Hoje moro em Nova Parnamirim. Minha ligação com as áreas da cidade, não só com as Quintas, me lembro de muita coisa boa lá. Meu gosto de literatura, a base da minha formação, a tentativa de querer ser jornalista veio nas Quintas.
Biblioteca Itinerante
Eu era criança ainda e no início da década de 60 a prefeitura tinha uma biblioteca itinerante. Era um ônibus pintado com o teto amarelo e a carroceria marrom, e era uma biblioteca que parava com certo cronograma nos bairros da periferia. Ele parava na São Geraldo em frente ao Mercado Público, e os estudantes e quem tivesse inscrição tiravam livros. Quem tinha a carteirinha era minha irmã mais velha, a Ednice que hoje é sub secretária de Educação do Município. Ela pegava os álbuns de “As Aventuras de Tintin”: o repórter e foi apaixonante. Me alfabetizei e comecei a gostar de ler com as histórias em quadrinhos. Lembro demais de ler Maurício de Souza, Disney... através do Tintin eu me encantei profundamente pelo jornalismo. Isso de estar cada dia em um lugar diferente, aprender a desvendar os mecanismos de poder que a sociedade esconde, foi algo que me faltava sentir. Ela lia para mim, eu não sabia ler e a partir daí fui decorando cada letra e aprendi a ler rapidamente.
Literatura e jornalismo
Comecei a ler muito Monteiro Lobato, O Sítio do Pica Pau Amarelo. Lembro que li vários Clássicos como Dom Quixote de uma coleção que tinha na biblioteca itinerante. E sempre que me entendi de gente achei que fosse ser jornalista, nunca optei por outras profissões, nunca fiz outra opção, nem no vestibular. Nas Quintas reforcei também meu gosto pelo jornalismo. Comecei muito cedo a participar do grupo de jovens do padre Thiago Rancer da paróquia Nossa Senhora do Perpetuo Socorro e conheci pessoas como o fotógrafo João Maria Alves, Edvan Martins, a Rosa que já faleceu. Era uma turma muito boa e eram muito politizados. Lembro do Dedé de Santana do Mato, um advogado que também participava das nossas reuniões, ele distribuía o jornal Movimento Operário, O Pasquim, e trazia para eu ler a imprensa alternativa. Tínhamos um jornal comunitário com certo tom de crítica e tudo isso foi reforçando meu amor pelo jornalismo.
Tribuna do Norte
João Maria Alves trabalhava como arquivista na Tribuna do Norte e passei a freqüentar bastante o jornal. E tinha um outro amigo que trabalhava no almoxarifado. Eu vivia no arquivo, onde no mesmo andar hoje é a redação. Nem sonhava em ser repórter nessa época, tinha 14, 15 anos e já lia muito. Mussoline Fernandes, um interlectual que lia muito e tinha uma cultura vasta, foi um dos três primeiros funcionários da Tribuna antes do jornal circular e ele me ensinou muito. Foi uma pessoa que fez matérias na época para o jornal “A Ordem”, entrevistou o ator Tayrone Power, serviu de interprete para autoridades e fizemos amizade. Eu tinha 16 anos, por aí e ele inclusive despertou em mim o gosto pelo selo, ele era filatelista e tinha uma das maiores coleções em Natal. Tudo isso foi reforçando meu gosto pelo jornalismo e pela literatura. Fiz vestibular e passei para jornalismo bem novo. No ano que fiz eu já estava envolvido com movimento estudantil, alternativo, tinha passado um tempo fora de casa, fui para a Bahia, andei pelo Brasil e voltei dois meses antes para terminar o segundo grau e fazer o vestibular sem estudar e passei. E cursei jornalismo.
Vida na Ribeira
Quando comecei a fazer jornalismo fui trabalhar na rádio Trairí, com Assis de Paula, Ciro Pedroza, e fiz cobertura para a campanha de 1982. Lembro de ficar até abril ou maio na Trairí e de la eu sai e fui trabalhar na Rádio Cabugi. Um tempo depois, desci para a redação da Tribuna do Norte com Dorian Jorge Freire e logo depois, Antônio Melo assumiu e o diretor de redação era Alfredo Lobo na sua primeira vinda para Natal. Fiquei um tempo entre a rádio e o jornal até que optei pelo jornal. Fiquei até 1989, depois sai e fiquei na primeira fase da Tv Potengi como pauteiro e virei editor de um dos jornais, até 1992. Depois tive um período sem estar em redação, com assessoria. Eu assinava como diretor de reprogramação, diretor de jornalismo na rádio. Quando saí da TV Potengi fui dois anos chefe de divisão de comunicação do INAMPS, quando foi extinto do governo Collor e retornei para a redação da TRIBUNA fiquei de 83 a 89, e de 1994 até 2018. Tudo isso para dizer que 1/3 da minha vida passei na Ribeira.
Infância
Minha infância até 12 anos era ligada à Ribeira porque meu pai era ferroviário e depois virou comerciante ambulante. Até o final da década de 60, início de 70, a comunicação com o interior do Estado era via ferrovias e ele comprava mercadorias em Natal e ele vendia bolo, café, lanches, nas viagens entre Natal e são Rafael ou Natal/Macau. Ele levava mercadorias para comerciantes, um tio meu também tinha um restaurante no Canal da Mancha, na travessa Venezuela, na Ribeira, onde hoje não tem mais nada. E eu freqüentava bastante. Lembro viajava na segunda de manhã e voltava terça meio dia, e sábado ainda vinha para a Ribeira. Naquela época tinha um comércio muito bom, os armazéns, as casas de ferragens, freqüentava muito a Ribeira. E Quando fui para a Tribuna foi uma retomada de uma relação que vinha desde a infância. Quando ajudava meu pai por aqui, tudo lembra ele. Minha área em Natal é basicamente a Ribeira. Aqui eu trabalhava, conheço todas as ruas e acompanhei também tudo se fechando.
Ilusão e internet
Hoje as conversas são na internet, o que não gosto. Acho que as discussões virtuais são ilusórias. As pessoas acham que os seguidores substituem as amizades e isso não quer dizer nada, são pessoas que você não conhece, não convive, são pessoas que muitas vezes se tornam muito danosas para a sociedade como um todo. A uniformidade faz com que as pessoas se fechem nos seus guetos e criem bolhas. A não aceitação das visões diferentes levam a atos de intolerância e isso já está indo para o convívio social mesmo, hoje vemos muita intolerância. Pela experiência de vida, percebemos que foi a diversidade que levou a civilização a chegar ao ponto tecnológico que chegamos. Para quem não acredita é preciso atentar que até a Gênese é uma história de diversidade, não existe uniformidade. O que buscam hoje é uniformidade.
Jornalismo atual
O jornalismo hoje enfrenta dois desafios grandes: o desafio empresarial, do próprio mercado, com advento da informação online, se criou algo que ainda não sabemos equacionar e como se posicionar diante de tudo isso. As empresas não detém mais os controles dos meios de produção da informação. E o outro desafio é a própria identidade do que é jornalismo. Algumas pessoas que se colocam como jornalistas, estão se posicionando de forma errada quanto à nova realidade, quando contribuem para notícias sem apuração, quando contribuem com informações que misturam com opinião, quando se colocam a serviço de determinados grupos ou são pagos por disseminação de informações que interessam mais aos objetivos empresariais do que a interesses coletivos. Só há uma regra que define o jornalismo, a regra de ouro é atender aos interesses coletivos.
📷 Alex Regis
Escrito por Michelle Ferret/TN
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